Nas primeiras horas da noite de 20 de outubro de 1948, Mauriti registra uma das mudanças no modus operandi da bandidagem que povoava nosso sertão: um assalto aos agropecuaristas Celerino de Sousa Leite e Marcos da Silva, conhecido, popularmente, por seu Marcos. Essas mudanças iniciam com o desabrochar da década de trinta e se consolida a partir dos anos quarenta; o cangaço dá lugar a um novo tipo de bandido: o capanga, a cabra de confiança que se hominizia a sombra do coiteiro, cuja fazendas transformavam-nas em valhacouto de bandoleiros: foragidos da polícia e da justiça, viravam guarda-costas, homens para diligências, usavam-nos para dá cabo a inimigos, ameaçar adversários que buscavam subtrair-lhe o poder, ou mesmo intimidar vizinhos e dominá-los. Nasce um novo coronel, ancorado no chefe político da capital, é o esteio que dá sustentação ao partido político em nível local, pois, enquanto sua facção política estiver de cima, ele tem o domínio e a influência decisivos sobre a justiça e a polícia, para sustentar e revigorar seu feudo eleitoral.
Em Mauriti tínhamos os coronéis que comandavam distritos, o chefe político urbano que se ligava diretamente ao deputado, senador e ao governador; esses políticos acostavam no seu entorno lideranças locais, de confiança, que transformavam em voto o prestígio que lhe era dado pelos políticos estaduais, com isso fortaleciam e revigoravam as hostes partidárias situacionistas. O chefe político municipal agregava sob seu mando homens de confiança para diligências e execução de serviços, cuja ferramenta de trabalho era o trinta e oito, o bacamarte, ou o papo amarelo. Para manterem seu domínio terciam redes de proteção, formadas por vários outros chefes, cujos os laços mais fortes se estendiam aos estados vizinhos; a relação de amizade e confiança tinha por objetivo assegurar e manter os “afilhados” dos parceiros regionais e seus próprios protegidos, longe da justiça e da polícia. Em Mauriti não era diferente, entre muitos casos de protegidos, cita-se o de Zé de Dó, nascido na Paraíba, município de Santana de Mangueira; após cometer assassinato em sua terra natal, migrou para o Ceará, vindo se proteger sob a tutela de um coiteiro mauritiense; sob a proteção do coronel local o facínora fez alguns trabalhos, mas a dificuldade de dinheiro levo-o para o assalto em casa de agropecuaristas da região. Para uma de suas ações recrutou um neófito, que atendia pelo apelido de Dandô, era um homem forte, afável no trato com as pessoas, respeitado pela sua eficiência na atividade que exercia, costumeiramente: exímio tangedor de burros, atividade conhecida como tangerino. Dandô trabalhou para alguns fazendeiros que residiam na sede do município, se destacava pela coragem e a honestidade com que tocava sua tropa de animais e pela a responsabilidade na entrega das cargas que transportava. Não tinha experiência na vida bandida, talvez por isso o assalto não tenha sido de todo exitoso, não era um matador. No município ficaram famosos os ataques às residências de seu Marcos, no Sítio Estrelinho e de Celerino de Sousa Leite no Sítio Cruzinha. Na mesma noite em que atacaram a casa do seu Marcos, em busca do dinheiro da venda de uma tropa de burros, para desespero dos bandidos, o negócio havia sido pago via promissora, mesmo assim, pegaram algum dinheiro e forçaram um dos filhos do dono da casa a guiá-los até a residência de Celerino, no vizinho Sítio Cruzinha. Ao baterem na porta anunciaram que era um dos filhos de seu Marcos, em busca de socorro: “o pai pedia que fosse aplicar uma injeção em um dos seus familiares que estava muito doente”. Celerino ao abrir a porta, para atender o pedido do amigo, foi empurrado de volta para dentro de casa, por Zé de Dó, enquanto o outro assaltante adentrava a casa e trancava a porta por dentro; iniciado o assalto, o rifle apontado em direção ao dono da casa, próximo ao seu rosto, refletiu a luz do candeeiro, desviou atenção do bandido, Celerino segurou no cano do rifle levantando-o a altura da fronte; veio o disparo, atingindo de raspão a fronte do assaltado; começa a descer um fio de sangue na face de Celerino, que atracado com Zé de Dó continua a segurar a arma, seguiu-se mais estampidos, o sangue continua a escorrer no rosto do vitimado; enquanto isso, a esposa, dona Mãezinha, tenta imobilizar o outro bandido, evitar que ele alvejasse o esposo, heroicamente, em defesa da família, se manteve na frente de Dandô, evitando que o marido ficasse na linha de tiro; Celerino, segura o rifle e atracado com Zé de Dó, moviam-se pela sala, como se estivessem realizando uma dança macabra, sob a luz amarelada e opaca do candeeiro, pendurado em um dos armadores da parede do cômodo.
Durante o embate dentro da residência de Celerino, pelos gritos dos filhos e da dona da casa e o baralho de tiros, chamou atenção do vizinho, seu compadre Miguel Loriano, juntamente, com dois os filhos vieram em socorro do amigo, gritaram, do terreiro, próximos a porta: “compadre segure os home que nós estamo chegando”; se aproximaram da porta fechada, por dentro, contornaram o oitão da casa em buscaram da janela lateral. Os bandidos se intimidam com o barulho que vinha do lado de fora da casa, abriram a janela e saltaram para o breu da noite; Celerino exausto arreia em uma cadeira, mulher e filhos vem em seu socorro. Lá fora, os bandidos cercados pelos Loreano armados de facão e roçadeira, recuam em direção ao curral atrás da casa, ao tempo em que respondiam ao cerco a bala, ainda que os tiros, inicialmente, miravam o chão, foi quando um dos meliantes gritou: “recuem se não morrem”, porém o bravo Miguel Loriano deixou os filhos para trás e partiu para cima dos bandidos, foi quando um dos assaltantes gritou “atire no home se não ele me mata”. O ataque se fechou em direção a porteira do curral, o barulho dos tiros rompiam o silêncio da noite e provocavam um rápido clarão na escuridão noturna, momento em que se vislumbrava a silhueta das pessoas envolvidas na refrega; aproveitando-se desse átimo de luz na escuridão um dos tiros baleou Aristides, filho de Loreano, quebrando-lhe o braço, fazendo com que ele e o irmão recuassem, enquanto Miguel, o pai, partiu para o ataque, e recebeu o tiro fatal, indo cair na porteira do curral, quando tentava retirar um dos paus da porteira; os filhos de Loreano se evadiram, só vindo tomar chegada ao amanheceu, ainda sob o silêncio da dúvida do que, realmente, acontecera: encontra o pai morte, sacrificado em nome da solidariedade. Um mártir da amizade.
Os dois sicários caíram na folha em direção ao buritizinho, antes de desaparecerem, cruzaram os sítios Cajazeirinhas e Entrelinho, neste havia uma festa de casamento, se chegaram a casa, Dandô cumprimentou alguns conhecidos, se abasteceu de água e comida, para ele e o compassa, seguiram em frente. Antes do sol enxugar o orvalho da noite, chegaram a Carnaúba dos Peus, bateram à porta de seu Péu, fazendeiro abastado, onde foram bem recebidos: comeram cuscuz, carne de carneiro assada, tomaram café, mas na hora que falaram em dinheiro, seu Peu, um homem forte e vigoroso, sem qualquer sombra de medo, foi peremptório: “aqui vocês têm água, comida, café e se quiserem rede para descansar no alpendre; a conversa foi interrompida quando um dos filhos do fazendeiro avisou que vinha se aproximando um carro, os dois bandidos saíram pela porta dos fundos, sumiram na mata que cobria a parte de trás do casarão.
Zé de Dó cometeu outros assaltos nos municípios vizinhos, até desaparecer das terras carirenses, Dandô, por informações, tomou rumo incerto e não sabido.
O delegado de Mauriti à época era Carolino de Sousa Leite, irmão do chefe político da UDN, Teodorico de Sousa Leite e parente de Celerino, deu as primeiras buscas aos bandidos nas localidades por onde passaram; porém, o contingente policial da cidade era reduzido, sem transporte e poucos recursos, sustaram a perseguição, sem êxito nas buscas, os criminosos desapareceram.
O mundo do banditismo evoluiu do cangaceiro, para o jagunço, deste para o cabra de confiança, daí para o pistoleiro profissional, que não tem patrão, nem chefe; vende sua força de trabalho, o braço armado, a quem o procura e contrata, sem laços de amizade, nem compadrio. Arrimado na persistência secular do braço armado, o crime trafega na penumbra da civilidade, mais organizado e mais afoito, uma vez que o olhar da justiça nem sempre o enxerga em sua totalidade e o braço da polícia não o alcança na sua essência.
Francisco Cartaxo melo