
Napa, com a desenvoltura de profissional contador de estórias, conta que nas cercanias de São Miguel, os fazendeiros costumavam soltar seus animais nas invernadas próximas; na movimentação com o gado, para a solta e na pastagem no perímetro da fazenda de Nezinho Maranhão, criou-se absoluto o novilho “preto limão” de sua propriedade; o bezerro tornou-se garrote, o novilho transformou-se em touro, sem nunca ir ao curral; mamou até o tope de garrote sem ser arriado, nos meses de inverno se entocava nas áreas desabitadas, conhecia cada riacho e cada ponto d’água, humilhava vaqueiros e cansava os melhores cavalos; no verão desafiava cercas de dez, quinze palmos de altura, “preto limão” cruzava-as com a facilidade de um campeão de cem metros com barreia: penetrava em roças de milho ou algodão, geralmente à noite, com o raiar do sol se amoitava na caatinga para ruminar o alimento noturno, quando não, ficava na espreita esperando os desavisados que seguiam seus rastros: um caçador de mel que mergulhava na mata em busca de uma mandaçaia, com muita sorte podia encontrar uma jandaira inchada de mel, até mesmo um enxu para não perder a viagem, mas se se depara com “Preto Limão”, adeus mel, pois ou jogava as tralhas fora e se socorria subindo na primeira árvore de porte ou era furado pelos chefes do barbatão; o rastreador afoito que procurava descobrir sua toca, preto limão, perseguia-o com a ferocidade de um tigre, o que lhe valeu o apelido de guardião da mata.
Nezinho Maranhão, cansado de receber queixas sobre as estripulias de seu boi, resolver desafiar os vaqueiros da região, juntou cinquenta vaqueiros e pactuou: se pegarem o barbatão nós vamos ter churrasco na fazenda e quem pegá-lo, ainda, levará um prêmio; no meio da vaqueirama surgiu o vaqueiro Balbino, um Teseu mauritiense, montado no cavalo Ventania, acompanhado do cachorro Pardal; ventania enfeitado parecia uma boneca em casamento de piquenique: a cela uma obra de arte, nas cabeçadas o bridão de metal e a estrela que descia entre as orelhas de ventania reluziam, combinando com os estribos do mesmo material; as rédeas de pele de caprino, trançadas, com destaque em vaqueta branca, combinavam com o pelego que cobria a esteira; a corda de laço trançada em coro cru, passa no pescoço do animal, em rodilha ficava guardada abaixo da lua da cela. Pardal, presente de sua noiva, farejador de boi desgarrado e fraterno do cavalo e de seu dono, era o verdadeiro fio de Ariadne que Balbino seguia nas pegas de gado.
Ao sair de casa para a pega do zebu a mãe de Balbino avisou: “filho para pegar o preto limão tem que primeiro rezar um pai nosso”, -“reza pra mim mãe”, e foi juntar-se aos demais vaqueiros; na mata, espalhados, cada um procurou seguir seu rumo: Balbino afiou os ouvidos, pé ante pé, ventania acompanhou o latido do cachorro pardal, que logo deixou o vaqueiro cara a cara com o marruá; ventania assomou para cima do Preto Limão: o marmeleiro baixou, a jurema arrepiou, o carrasco deitou, a mata abriu e fechou, em um raio de trezentos metros Balbino jogou o bruto no chão, enquanto o fiel pardal se mantinha agarrado ao focinho do touro; dominado o animal chegaram os demais vaqueiros, ajudaram-no a arrear o brabo e conduziram-no à fazenda de seu dono. Na casa grande, preto limão foi para o sacrifício, ao feri-lo entre os chifres com um pontiagudo punhal, o boi deu um galão, o punhal fincado na cabeça do animal fez o touro arriar, enquanto dava seu último esturro acompanhado de prolongado gemido e de um filete de sangue que jorrava do seu cachaço; tirado o couro e esfolado, pesou duzentos e cinquenta quilos; abatido o boi, Nezinho Maranhão perguntou quantos quilos Balbino queria: -“Seu Nezinho quero apenas o fígado do bicho”; ao receber o órgão bovino, Balbino retalhou-o, arregaçou-o, extraindo uma pedra de seu interior, que limpa e escovada, levou-a para Juazeiro; ao negociar sua prenda, com o dinheiro comprou mercadoria para revender, e uma fazenda onde, juntamente, com a família progrediu, criou e educou os filhos. Essa foi a “via-crucis” do Preto Limão, que depois de imolado operou o grande milagre ao transformar um vaqueiro em fazendeiro abastado e em respeitável homem de negócio. (*)

FRANCISO CARTAXO MELO
*Causo repassado por NAPOLEÃO LACERDA