Início do calendário escolar em Mauriti, final da década de sessenta, a cidade acelera os passos: cai as primeiras chuvas, dão-se os primeiros movimentos no caminho do roçado, os pais levam seus filhos para ajuda-los no primeiro plantio: em fila indiana, enxada no ombro, o trabalhador faz sua marcha com a lâmina da enxada voltada para seu pescoço, dando a impressão de guilhotina preguiçosa, aguardando o momento de decapitar seu dono; a família o segue, vagarosamente, movida pela esperança em um bom inverno. No contraponto da paisagem humana, de início de ano, meninos e meninas, de fardamentos novos, se deslocam para os bancos escolares: os livros debaixo do braço, outros, mais abastados, expõem suas mochilas, junto as quais exibem lancheiras com a merenda. Os menos endinheirados levam sua merenda enrolada em papel de embrulho ou em saco plástico, guardada com cuidado, disfarçadamente, no bolso da farda; outros, de pais descuidados, levam dinheiro em espécie para as guloseimas, ou correm, em busca da boa cocada, na bodega de João de Lira que em sua infinita paciência atende a todos com obsequiosa cortesia.
Na azáfama do primeiro dia escolar, o corre, corre, pega, pega, tornam o início das aulas um momento ímpar, uma grande festa: reencontro, novos alunos, professores diferentes, uma sala maior, o quadro verde, ainda cheirando a tinta.
Todos em sala de aula, feita a chamada, um dos novatos chama atenção: gordinho, pernas meia arqueadas, o mais estranho é a lancheira cor de rosa, cujo recheio desperta a curiosidade e o apetite dos colegas. Sentados lado a lado, Jota e Valdito, o novato, iniciam uma rápida conversa, fizeram as apresentações: Jota de Mauriti, tinha uma penca de irmãos, o pai marceneiro, tinha facilidade para engendrar seus próprios brinquedos; Valdito de Fortaleza, desconhecia a sociabilidade interiorana, mas já capturou uma amizade; adiantou que morava com os tios, o dono da padaria mais importante da cidade, por coincidência quase vizinho dos pais de Jota. Nos dias seguintes iam ao colégio juntos, trocando ideias: um falava das habilidades do pai, dos banhos na barragem de seu Izidro Braga, no banheiro dos Dantas; Valdito, exaltava a importância do tio, dono de time de futebol e conhecido por todos da cidade, ao mesmo tempo, vaidoso, descrevia as belezas da cidade natal, a capital cearense: praias, clubes com piscinas para adultos e crianças e o sítio da família.
Só uma coisa deixava Jota intrigado: a lancheira rosa. Um dos colegas mais safados já havia insinuado, “de namorada nova”? Jota se conteve, pois era conhecida a fama do valentão, por outro lado temia perder a boca livre: bolos, sequilho, até empada já havia dividido com Valdito. Abandonara a banana, a cocada de Lira, já que se fartava no recheio da lancheira rosa. Mesmo assim, para evitar censura da turma resolveu dissuadir Valdito. Em um desses dias ensolarados, de final de fevereiro, cruzaram a praça: flores de múltiplas cores, colegas conversando em pequenas rodas, olhares enviesados observavam ambos, não se conteve, abriu o bico: – “Valdito! É melhor você não levar para o colégio a lancheira rosa, a turma está te chamando de rapaz alegre. Peremptório, Valdito acudiu. “O que? Que diabo é isso”? Jota tergiversou, – “sabe como é”: “acham que você está mais para Valdita”. Valdito puxou pela memória, lembrou-se do repertório de Tico Língua Solta, amigo dos tempos de Otávio Bonfim: “Filhos da puta”. “Não! Já me apelidaram de galo-enfeitado, porque eu sempre ando pronto, disse minha tia”. Ponderou Jota: “é outra coisa, que serve para levar fumo, é o velho cachimbo”. Valdito, vermelho de raiva foi aos finalmente: -“pensei que você fosse meu amigo”. Jota obtemperou, desculpe; lembrou da professora de história que dizia: “vou devagar, porque vou longe”. Deu de ombros, caiu fora, foi juntar-se a sua antiga turma.
A partir daquele dia Valdito se afastou de Jota e passou a levar sua merenda em um saquinho de plástico, símbolo da macheza de um mundo que começava a desmoronar. Jota voltou a levar sua banana e na sexta-feira corria para saciar a fome nas cocadas de João de Lira.
Francisco Cartaxo Melo